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SOUNDS AND COLOURS BRAZIL (2013)
O que me salta aos ouvidos imediatamente neste segundo disco de Caê é sua maturidade e pleno domínio como arranjador, produtor, vocalista e instrumentista. Quantos músicos da sua geração são capazes de assumir tantas funções diferentes e alcançar um resultado tão conciso, polido, fluente, equilibrado e extremamente pop como este "A Nave de Odé"? Preste atenção nas linhas de guitarra e baixo, nas texturas de órgão e mellotron, nas levadas de violão, nas várias vozes dos coros e nos arranjos de sopro... Não é pouca coisa.
Caê mostra-se completamente à vontade ao optar pela combinação e recombinação de elementos rítmicos e melódicos ligados a gêneros brasileiros, jamaicanos e africanos muito diversos: fragmentos de ijexá e de samba de roda baiano, ares e brisas de reggae e dub, tramas de guitarras trazidas do highlife, levadas de afrobeat e de pop angolano, climas e timbres de trilha sonora e soul music encontram-se e desencontram-se com a canção brasileira de tendência minimalista e circular.
Tudo alinhavado pela força da musicalidade nascida na África Ocidental e esparramada pelas Américas e pelo Caribe. E é justamente nos momentos mais marcantes do disco que estas linhas e fronteiras tendem a se apagar pra revelar algo fresco que tende a desafiar nomes e classificações.
Em seus arranjos, Caê equilibra com consciência e imaginação o silêncio e a densidade, a diversidade de timbres e texturas, a unidade e concisão da estrutura, tudo a serviço da fluência e clareza das canções, num resultado inegavelmente pop. É uma tapeçaria sutil e muito bem acabada que injeta balanço e vigor à sua personalidade musical já marcada pela doçura e leveza do seu trabalho de composição. Este contraponto entre o impulso visceral da dança e o ar tranquilo de suas canções é uma das belezas e virtudes do disco.
Diante de tudo isto, me pergunto: faixas como "O Caçador e a Flecha", "Zambê", "Tão Blue" e "Talismã" não merecem ser veiculadas nas maiores rádios do país? É só o jabá mesmo ou os ouvidos dos programadores estão fechados para uma música que ouse ser acessível e inventiva ao mesmo tempo? Que "A Nave de Odé" retorne ao mundo imenso de onde veio, com toda atenção que lhe é devida.
Caçapa
São Paulo, maio de 2016.
Release publicado em: https://www.cae.art.br/
Passo Torto e Ná Ozzetti é cinema.
É música e palavra em curto-circuito, desencadeando a imaginação do ouvinte: imagem e ação, imagem em movimento... é cinema, na sua sugestão de ambientes e espaços, planos e enquadramentos, de climas e texturas quase palpáveis... aquele cinema do cinema novo, da nouvelle vague e do cinema marginal... por vezes aquele ar de um radical desenho animado para adultos ou de uma antiga e agridoce comédia italiana... é também um cinema de guerrilha, feito com enorme economia de recursos e abundância de ideias... música pode ser tudo isto.
Passo Torto e Ná Ozzetti é canção.
Mas não exatamente a canção do samba-canção, a canção com refrão, a canção de amor e dor-de-cotovelo... canções que contam pequenas estórias, mas estórias sem grandes heróis nem moral da estória... estórias nem sempre lineares, estórias tortas cantadas em poesia, mas conduzidas também pela montagem inusitada dos arranjos, pelos cortes bruscos e secos, pelo contraste entre timbres saturados e cristalinos, pela alternância entre a estática do ruído e do quase-silêncio e a vertigem das intricadas texturas polifônicas... tudo isto pode ser canção.
Mas, não... não é só isso... Passo Torto e Ná Ozzetti fazem cinema-canção... sim, cinema-canção.
É um cinema-canção com locações em São Paulo.
Mas não estamos propriamente na São Paulo dos personagens de Adoniran e de Vanzolini... não uma São Paulo explícita nos nomes de ruas e bairros... mas uma São Paulo arrancada do juízo de cada uma das cinco cabeças que se encontram nesse disco... é a São Paulo da urgência e da densidade, do sexo e da falta de sexo, da morte e do carnaval... mas é, antes de tudo, a São Paulo transfigurada em um estado mental.
Passo Torto e Ná Ozzetti é vanguarda mas também é tradição.
Passo Torto sempre soou como banda coesa e não como um mero aglomerado de trabalhos individuais, e a presença-
parceria de Ná Ozzetti felizmente se dá com grande naturalidade... é raro uma artista se manter na vanguarda durante toda sua vida (afinal a vanguarda é o pelotão de frente de um exército, reservado aos mais jovens, ainda enérgicos e entusiasmados), e também são raros os encontros entre duas gerações de artistas que resultem em frutos tão maduros e
homogêneos... pois aqui Ná Ozzetti alcança essas duas virtudes com muita leveza... e assim presenciamos algo digno de nota: a vanguarda nascendo de novo e se transformando em tradição que alimentará futuras vanguardas e outras tantas tradições.
E por que “Thiago França”?
Como diriam aqueles ilustres baianos-paulistanos, Tom Zé e Vicente Barreto (vanguardistas à sua maneira e tão atentos à música dos mais jovens quanto a própria Ná): “Hein?” “Thiago França” é o Passo Torto e Ná Ozzetti mantendo a tradição de confundir para esclarecer.
Caçapa
São Paulo, 30 de junho de 2015.
Release publicado em: http://www.passotorto.com.br/site/Sobre/Sobre.html
Qualquer reflexão ou diálogo a respeito da música tradicional do Nordeste brasileiro esbarra imediatamente no problema da própria denominação do objeto. Música de tradição oral, música tradicional, música de rua, música de terreiro, música regional, música de raiz, música folclórica, ou cultura popular. Nenhum desses termos é capaz de abarcar a imensa diversidade estética desse universo, nem…
MESTRE AMBRÓSIO, 1996
Lançado em 1996, em meio à efervescência do manguebit, o primeiro disco do Mestre Ambrósio era uma revelação: uma sonoridade crua, forte, visceral e incomum, nascida de uma relação intensa e radical com a antiga e tradicional música de rua do Nordeste brasileiro, sem apelos a conceitos nacionalistas ou discursos xenófobos, e até mesmo cultivando uma abertura saudável e sutil para elementos do rock e da música africana.
Para entender o impacto que a banda causou, é preciso ter consciência de que os trabalhos mais instigantes daquela época – Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A – embora tivessem entre suas maiores virtudes uma aproximação muito original do universo pop com algumas vertentes pouco celebradas da música brasileira, deixavam transparecer uma imersão muito mais profunda na cultura do hip-hop, do punk rock e da psicodelia.
A banda, uma das maiores responsáveis pela renovação do forró pé-de-serra, aventurou-se criativamente por gêneros ainda pouco valorizados, ou mesmo desconhecidos, pela juventude dos grandes centros urbanos – cavalo-marinho, maracatu de baque solto, coco de roda, cantoria de viola – e, no caminho, ampliou as possibilidades de utilização de instrumentos pouco lembrados, mas outrora muito populares no Nordeste – como a rabeca, a viola dinâmica, o fole de 8 baixos, o ilú, e a zabumba – e ajudou a chamar a atenção para os mestres da música tradicional de Pernambuco, como Luiz Paixão e Biu Roque.
As belas composições de Siba, um dos músicos mais criativos de sua geração, são um dos pontos altos do disco, pois ao mesmo tempo em que demonstram um raro domínio das linguagens musicais e poéticas tradicionais do Nordeste, conseguem alcançar o estágio ainda mais difícil em que o estilo pessoal do autor é imediatamente reconhecível. A força dessas composições, aliada à maestria dos quatro percussionistas, à expressividade da rabeca de Siba, e à performance
coesa do conjunto, mantém o frescor do disco até hoje, e várias das suas faixas já se transformaram em clássicos da música produzida no Nordeste.
É inegável a forte influência do Mestre Ambrósio sobre um grande número de músicos jovens, a partir do final dos anos 90. Alguns exemplos de influência direta podem ser percebidos no trabalho da banda Chão e Chinelo (do qual fui integrante, tocando viola e zabumba, ao lado do rabequeiro Maciel Salu, e do compositor Nilton Jr., atual líder do Pandeiro do Mestre); da Comadre Fulozinha (da qual fizeram parte Karina Buhr, Alessandra Leão e Isaar); da cantora Renata Rosa; de Cláudio Rabeca e do Quarteto Olinda; dos paraibanos da Cabruêra e dos cearenses da Fulô da Aurora; além de vários grupos de forró no sudeste brasileiro, e até mesmo na Europa e América do Norte.
Caçapa
Recife, 26 de maio de 2013.
ARTIGO
REVISTA +SOMA #26 (2011)
TOP 5 ÁFRICA – DISCOS
DAY BY DAY: CLASSIC HIGHLIFE OF THE 1950s AND 1960s
E. T. Mensah (Gana)
RetroAfric | 1991
O multi-instrumentista, compositor e arranjador E. T. Mensah (1919-1996) é considerado um dos pais da música popular africana da segunda metade do século XX, por sua contribuição na criação e desenvolvimento do gênero conhecido como highlife, e na disseminação e valorização dessa música em boa parte da África Ocidental e da Europa. Sua orquestra, The Tempos Band – formada por um naipe de sopros, guitarra elétrica, contrabaixo, bateria e percussão – interpretava principalmente o highlife (que une organicamente a tradição africana às influências da música européia e latino- americana), mas também se aventurava por gêneros como o calypso (nascido no Caribe) e ritmos tradicionais africanos como o adowa (em compasso 6/8); cantando tanto em inglês (a língua do colonizador) como nos dialetos locais (twi, fanti, ga, ewe), e até mesmo em espanhol (como na faixa “Senorita”). Música essencialmente divertida e acessível, sem abandonar os temas políticos (como a independência de Gana), e invariavelmente construída com leveza, elegância e muito balanço.
CHIBITE
Hukwe Zawose (Tanzânia)
Real World Records | 1996
Hukwe Zawose (1940-2003) foi um cantor e multi-instrumentista auto-didadata, integrante do grupo étnico Wagogo da Tanzânia (na costa leste da África), cuja carreira contribuiu para que a música tradicional de seu povo alcançasse prestígio internacional. Nesta gravação, um excelente produção do selo Real World Records (fundado pelo músico inglês Peter Gabriel, um fã de Zawose) fica evidente que ele foi um dos cantores mais impressionantes já registrados na história da música africana. Tocando alternadamente instrumentos tradicionais de timbre marcante – ilimba (algo como uma kalimba grande, com maior número de lâminas), izezs (instrumento de cordas tocado com arco), filimbi (flauta) e nguga (chocalhos presos ao tornozelo) – e acompanhado por seu filho Charles (cantor e também um mestre da ilimba), Zawose produziu um belo exemplo da tradição africana de recorrer às texturas polifônicas, às frases em ostinato e à improvisação para construir a estrutura musical e alcançar o estado de transe. E acima desta trama polifônica paira a sua voz incrível, alcançando uma extensão impressionante de 5 oitavas, transformando-se constantemente, passando fluentemente de um falsete bastante agudo para um grave rouco, quase um rosnado, e por vezes criando a impressão de emitir duas ou mais notas simultaneamente, assim como fazem alguns músicos da tradição de canto difônico da Mongólia, na Ásia.
NIAFUNKÉ
Ali Farka Toure (Mali)
World Circuit | 1999
Por escolha do próprio Ali Farka Toure, aos 60 anos de idade, esse disco foi gravado em sua terra natal, Niafunké – uma cidade localizada às margens do rio Niger, no limite sul do deserto do Saara, sem serviço público de energia elétrica. O produtor Nick Gold e o técnico Jerry Boys levaram um estúdio móvel e um gerador para uma escola de agricultura abandonada e registraram, de forma brilhante, alguns dos momentos mais marcantes da obra de Ali Farka. Acompanhado por músicos locais no coro e nos instrumentos tradicionais, Ali Farka canta, declama e alterna entre a guitarra elétrica (gravada com um timbre acertadamente quente e saturado), o violão de aço e o n'jarka (monocórdio tocado com arco), criando uma música fortemente ligada à realidade social e à antiga tradição musical do Mali (influenciada pela cultura dos griots e dos tuaregs), ao mesmo tempo em que mantém intacta a sua personalidade inconfundível e o seu estilo particular de execução (adaptado do n'jarka para a guitarra e o violão, segundo o próprio músico).
CONGOTRONICS 2: BUZZ'N'RUMBLE FROM THE URB'N'JUNGLE
Kasai Allstars / Masanka Sakayi / Sobanza Mimanisa / Kisanzi Congo / Basokin / Bolia We Ndenge / Konono No1
(República Democrática do Congo)
Crammed Discs | 2006
A audição dos discos da série Congotronics foi o acontecimento musical mais incrível que vivenciei desde os primeiros show do movimento manguebit que assisti no Recife, e das primeiras noites passadas em claro nos terreiros de Maracatu Rural e Cavalo Marinho do interior de Pernambuco, ainda no começo dos anos 90. E de todos os discos da série lançada pelo selo belga Crammed Discs, este é o que mais me impressionou: uma compilação de 7 grupos de diferentes etnias e regiões da República Democrática do Congo, unidos pela migração em direção à capital Kinshasa e pela abordagem inusitada e muito criativa da antiquíssima tradição musical do país. Utilizando-se de sistemas elétricos improvisados (muitas vezes construídos pelos próprios músicos) para amplificar as vozes e instrumentos tradicionais como o likembe (espécie de kalimba de dimensões variadas, como o likembe baixo de 20”), acabaram por alcançar timbres saturados/distorcidos muito poderosos que, aliados às antigas texturas polifônicas e padrões rítmicos hipnóticos, e ao uso de objetos e instrumentos ocidentais adaptados (como as guitarras elétricas reconstruídas, e as latas de spray percutidas contra grades de cerveja), conferem à música um sabor raro: a união das vibrações mais ancestrais do ser humano à modernidade mais radical da música urbana. Música visceral, forte, ousada e extremamente viciante. Cuidado!
HISTORICAL RECORDINGS BY HUGH TRACEY – 1949-1963 (22 CDs)
SWP Records | 1998-2006
Nascido na Inglaterra, Hugh Tracey (1903-1977) mudou-se para o Zimbabwe no início da década de 20 (àquela época, uma colônia britânica, localizada na costa leste da África) para cuidar de uma plantação de tabaco com seu irmão mais velho. Sua paixão pelo universo musical africano nasceu do contato direto, em suas terras, com os trabalhadores da etnia Karanga, com os quais aprendeu a cantar na língua Shona e a tocar os instrumentos tradicionais. Mesmo diante da resistência inicial dos colonizadores britânicos, principalmente por parte de instituições como a igreja, o governo e a academia, Tracey dedicou sua vida ao registro, estudo e valorização desse universo musical vastíssimo e pouco conhecido no Ocidente, chegando a fundar em 1954 a International Library of African Music. Esta coleção excepcional de 22 CDs apresenta suas gravações de campo produzidas entre 1949 (ano em que surgiu o gravador de fita magnética) e 1963, em 12 países do centro, sul e leste do continente africano (Ruanda, Uganda, Quênia, Tanzânia, República Democrática do Congo, Zâmbia, Malawi, Moçambique, Zimbabwe, Botswana, Lesoto e África do Sul), com um excelente trabalho de remasterização, acompanhada ainda por vasto material informativo e fotográfico. Sem treinamento formal em etnomusicologia, mas munido do equipamento de gravação em campo mais avançado da época, Tracey utilizava uma técnica particular de segurar o microfone com uma das mãos, movendo-se ao redor dos conjuntos para captar cada instrumento com clareza impressionante, chegando por vezes ao ponto de interferir no posicionamento dos músicos para obter um melhor equilíbrio na gravação (atitude pouco ortodoxa num trabalho de pesquisa etnomusicológica). E nesses 14 anos de trabalho aqui apresentados, produziu registros valiosíssimos, tanto do ponto de vista histórico quanto estético, abrangendo uma diversidade enorme de tradições musicais: da extinta música das cortes reais de Ruanda (exterminada no genocídio do reino Tutsi em 1961) e de Uganda (que em 1966 teve seus palácios incendiados, seus músicos assassinados e seus instrumentos destruídos), à incrível música da etnias Luba-Luluwa e Luba-Kasai (do Congo) – que permanece viva no trabalho dos músicos do Kasai Allstars (presentes na compilação Congotronics 2) – passando ainda pelas belas gravações de uma jovem cantora sul-africana acompanhando a si mesma num ancestral do berimbau brasileiro, e de pioneiros da música popular africana atual, como o cantor e violonista George Sibanda e bandas da cena de jazz africano dos anos 50, no Zimbabwe.
Caçapa.
Recife, novembro de 2011.
IPHAN, 2006
O Iphan disponibliza o dossiê/livro completo pra download gratuito.
Para acessar e baixar o livro, clique aqui.
Caçapa.
Overmundo, 23 de novembro de 2006.
Localidade de São Domingos, no município de Arcoverde, sertão de Pernambuco: Seu Né, o último remanescente do bando de cangaceiros liderado por Virgulino Lampião, recebe a visita de familiares que acabam de chegar do Recife. Trazem consigo o primeiro CD gravado por Tiné, seu neto-sobrinho – um jovem de classe média educado na capital – e ao soar a primeira faixa do disco, o já idoso Seu Né se levanta da cadeira, se põe a dançar e exclama: “Isso é que é música!!”
Cerca de seis meses depois de lançado o CD, um produtor musical japonês, Makoto Kubota, em visita ao Brasil com a finalidade de conhecer mais a fundo o carnaval e a música produzidas em Pernambuco, se encanta com o disco e resolve incluir a faixa “Vento Corredor” (composta por mim e por Tiné) na coletânea Nordeste Atômico, Vol.1, lançada no Japão em 2005. Participam da coletânea 13 artistas pernambucanos e 01 paraibano. Em 2006, a cantora argentina Florencia Bernales, também em visita a Pernambuco para conhecer o carnaval e a produção musical do Estado, descobre o CD já citado e decide regravar a mesma “Vento Corredor” no seu próximo disco que será dedicado à interpretação e à recriação de canções latino-americanas, contemplando compositores consagrados como o venezuelano Simón Diaz e o brasileiro Elomar, mas também abrindo espaço para canções e músicos ainda desconhecidos para além do seu local de origem.
Que CD é esse? Quem é esse Tiné? Você tem razão em estar se questionando, afinal de contas o disco em questão, apesar de relativamente conhecido pelo público da região metropolitana do Recife e da região de Arcoverde, é praticamente inédito no resto do país. E é justamente esta a razão que me levou a escrever este texto: tentar torná-lo um pouco mais acessível ao público brasileiro... e mundial. Este disco nasceu de uma idéia inusitada, imaginada por Tiné, de estabelecer uma parceria entre os nossos ofícios de compositor e arranjador. Partindo das melodias vocais e das letras criadas por ele, escolhi a instrumentação e compus as partes dos coros, das cordas, dos sopros e da percussão, definindo a estrutura formal das canções, de modo que os arranjos se tornassem quase que inseparáveis das composições.
Natural de Arcoverde, mas criado em Recife, Tiné manteve o vínculo afetivo com a sua cidade natal, podendo assim, assimilar a impressionante musicalidade do Samba de Coco Raízes de Arcoverde, e ao mesmo tempo se aventurar na multiplicidade de informações que a cena musical da capital permite absorver.
Tendo como referência fundamental a tradição musical do sertão (o samba de coco, o baião de viola) e outras formas musicais que lhe são familiares (o choro e o samba, por exemplo), procurei criar uma música que demonstrasse claramente essas influências, ao mesmo tempo em que abrisse caminhos e idéias originais, e até mesmo estranhas a essas tradições.
Um elemento importantíssimo nesse processo foi a técnica de contraponto. Utilizada há séculos por compositores eruditos com extrema complexidade, pois consiste no emprego de duas ou mais melodias simultâneas ao invés do simples acompanhamento, mas também utilizadas em formas populares como o próprio choro, esta técnica possibilita um notável enriquecimento da textura musical e foi o principal método de composição empregado nos arranjos. Mas tudo isto soaria falso se não ficasse clara a qualidade das composições e o talento dos músicos convidados, revelando amplo domínio e experiência no trato com as formas musicais abordadas aqui. Assim tornou-se possível esse disco, trilhando o caminho da elaboração, sem prejuízo da fluência e da naturalidade tão vitais para a música brasileira.
Caçapa. Recife, fevereiro de 2004.
Texto extraído do encarte do CD “Segura o Cordão”.
Muitos ouvintes (inclusive alguns daqueles que admiram o disco) referem-se ao “Segura o Cordão” como sendo um disco de música regional, ou roots, como preferem outros. Acredito que esta classificação, ou rótulo, carrega um tom um tanto pejorativo e reducionista que atrapalha um pouco a justa apreciação do seu valor (ou da sua falta de valor, decida você mesmo!) como obra musical, e talvez até afaste um público em potencial (mesmo que este seja pequeno) em Pernambuco e no Brasil. É claro que o disco demonstra uma inegável fidelidade ao espírito da tradição musical brasileira, e especialmente a do sertão nordestino; mas também é fato que outros elementos e processos musicais foram fundamentais para o resultado final (fato este que não interfere necessariamente no seu valor artístico, é bom lembrar).
Ao lado da força rítmica do samba de coco e do baião, da sonoridade áspera das violas, do modalismo melódico e harmônico, encontra-se a técnica de composição nascida na Europa e que exige consciência e raciocínio no trato com o material musical (o contraponto); encontra-se a idéia (disseminada pelo rock dos anos 60) do ábum conceitual, na qual todas as partes, e até mesmo a ordem das faixas, influenciam no resultado final; encontra-se a utilização de ferramentas digitais fundamentais para o processo de composição dos arranjos: o software para editoração de partituras e a linguagem MIDI para criar as “plantas baixas” e as “maquetes” sonoras apresentadas aos músicos convidados antes das gravações. E mais importante do que tudo isso: como explicar a indentificação imediata de um japonês, de uma argentina e de um ex-cangaceiro ao entrarem em contato com o disco? Será que isto é mesmo música regional?
Caçapa
Publicado no site Overmundo em 23 de novembro de 2006.